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Os lugares da estetica
Julio Roesch de Campos

Parece que Aristóteles teria dito: "A beleza é o melhor cartão de visitas possível". Começar por aí e investigar sobre a construção histórica do conceito atual da estética poderia ser um rumo emocionante. Mas resolvi seguir outro, mais próprio. Tentei rastrear como esta noção foi se construindo dentro de mim ao longo dos anos. Minhas razões são ligadas a constatação de que essa forma de produzir conhecimento encontra vazão, muitas vezes, em um guia classificatório que, posteriormente, pode ser utilizado como um mapa para o caminho.

Pelo que posso recordar, meu primeiro encontro conceitual com o tema da estética, já que desconsidero o delumbramento pela minha professora do primeiro ano primário por ser não simbólico, foi há muitos anos, com um comentário casual sobre o jogo japonês Shogi. Trata-se de um xadrez mais complexo, pelo que entendo, devido a que as peças eliminadas passam a integrar o ataque do oponente. Depois das explicações de praxe havia uma entrevista de um jogador máster. Sobre a maneira mais eficaz de jogar o entrevistado respondeu que, estando em uma situação difícil, com muitas opções, ele tentava escolher a jogada mais bonita e elegante. Para mim foi um choque. Como pode ser que um jogo que simule a guerra tenha, nos momentos mais difíceis, uma resolução estética?

A segunda visão estruturante foi com um prosaico "Esporte na TV". Estava, um belo dia, assistindo a um importante campeonato de golfe e um fato me chamou a atenção. O comentarista, enquanto o jogador executava o golpe, entremeava considerações muito pertinentes sobre o futuro da bolinha. Conseguia, milagrosamente, antecipar, com acerto, várias jogadas. A principio pensei ser um problema de descompasso na transmissão, com a imagem chegando atrasada. Mas, o outro comentarista veio em meu auxilio, elogiando as capacidades clarividentes do colega. Então compreendi. Comigo acontece algo similar, só que com o tênis. Ter começado a jogar com muito tenra idade me dá, hoje, a possibilidade de saber, em varias ocasiões, antecipadamente, como a jogada será. Refletindo sobre o fato, hoje não me resta dúvidas que, pelo menos parte das explicações do fenômeno, envolve um ordenamento estético. A postura do jogador, a sua dinâmica muscular, a forma como a raquete toca na bola, em suma, a harmonia e a beleza da movimentação permitem o predeterminar intuitivo dos acontecimentos. Inclusive penso ser possível afirmar que, depois de um determinado ponto de desenvolvimento em qualquer esporte, "não é suficiente jogar muito bem; é imprescindível também jogar bonito".

A terceira circunstância que compõe os prolegômenos das minhas conclusões diz respeito a uma reportagem da revista Veja de alguns anos atrás. Tratava sobre a inusitada capacidade de duas conhecidas cidades turísticas de enlouquecer os visitantes. Apoiados em vários dados estatísticos, se referiam a Jerusalém e Florença como detentoras dessa funesta propriedade.  As razões apresentadas eram de diferente conteúdo, embora nos dois casos seja considerado um problema de saúde pública. Jerusalém tem a capacidade de produzir delírios místicos, com um numero alarmante de pessoas recebendo ‘revelações’ e saindo a pregar sua nova (ou antiga) religião pelas ruas. A explicação agregada responsabilizava a enorme quantidade de informação proveniente de seus meandros, com um inusitado encontro das 4 maiores religiões no mundo num único lugar. Explicação bastante convincente.

Quanto aos turistas que enlouquecem em Florença as explicações são similares, mas provenientes de outro "acervo psíquico". A psicanalista e psiquiatra de saúde pública, Graciela Marguerite, começou a estudar esses casos com posterioridade aos atentados contra obras de arte naquela cidade. O dano causado a Pietá de Miguelangelo, no Vaticano, foi desconsiderada por pensar-se, na época, em terrorismo. Os primeiros estudos foram posteriores a tentativa de depredação com spray da Primavera de Boticelli, nas Galerias Uffizi, na esteira de vários outros incidentes semelhantes. Como o perfil do depredador tinha muito mais de artista que alguém ligado ao mundo do terror, Graciela Marguerite tomou a resolução de investigar as circunstancias a fundo. Concluiu que se tratava de pessoas solitárias que não tinham como compartilhar ou extravasar todas as emoções que aquelas obras de arte reunidas despertavam. Denominou "Síndrome de Sthendal" a esse conjunto de circunstancias visto que o escritor descreve com pormenores uma situação onde, saindo de uma catedral, na mesma Florença, depois de estar durante mais de uma hora apreciando um afresco na cúpula, foi acometido de uma violenta tontura que o fez rolar pela ampla escadaria de acesso. Fiquei encantado com a explicação por duas razões. Por um lado tinha descrito, há vários anos, uma situação semelhante dentro da sessão analítica, onde o psicanalista se vê inundado pelo material do cliente e, na impossibilidade de decodificá-lo, tem uma intoxicação que, em algumas ocasiões, tarda em ser digerida. Por outro lado entendia pela primeira vez uma situação pessoal que a muito me ocupava. Nunca me havia podido explicar convincentemente porque, depois de um tempo relativamente exíguo, eu tinha ímpetos de ir-me dos museus. No Museu d’Orsay, lugar que considero o mais lindo não natural da terra, me ocorria com inusitada rapidez. Intrigado, depois de cumprir as sentenças de vergonha inerentes, comecei a questionar meus amigos mais sensíveis. Para minha surpresa encontrei que eles também eram acometidos do ímpeto insano de livrar-se dos museus. A constatação de que os seguranças não são afetados pelo ‘mal’ devido a suas desinteressadas presenças trouxe mais segurança à elucidação do enigma. Feliz com o descobrimento, consegui escalonar alguns degraus nessa ‘intoxicação’. Bocejos e dores musculares (principalmente nas costas) são os primeiros sintomas. Depois a atração pelo bar do museu, cafezinho e sanduíche, vai aumentando de intensidade até brilhar como única saída. Se insistimos em nossas já desesperadas aquisições culturais, as obras de arte, maravilhosas, deslumbrantes, únicas, começarão a assemelhar-se entre si, até transformarem-se em uma massa amorfa, idênticas. Foi assim que consegui a posteriori entender aquele casal de japoneses que passaram por mim, no corredor central do Louvre, a uma velocidade impressionante, enquanto eu, recém chegado, ia devagar e embevecido, em direção a Vênus de Milo. A mulher, sem sequer olhar para a milenar estátua, postou-se, enquanto ele clicava, só dando atenção ao enquadramento. Estavam intoxicados, não agüentando mais tantas diferenças culturais, planejavam, em casa, na calma do lar, deliciar-se com todas essas novas riquezas adquiridas. O que, na maioria das vezes, todos sabemos, revela-se uma ilusão.

Ainda nos prolegômenos do meu caminho de aprofundamento com a noção de estética, conheci o ‘segmento áureo’ de Pitágoras. Esse admirável pensador descreveu o que seriam as medidas básicas da excelsa beleza e muitas obras que mais tarde a humanidade viu surgirem à luz, basearam-se nos seus conceitos. Saber que Leonardo da Vinci conhecia seus estudos e os seguia a risca, foi uma emoção. Que as pirâmides do Egito (são anteriores a Pitágoras) sigam milimetricamente suas indicações foi uma surpresa. Posso ouvir o argumento do cético, com seu incansável afã de voltar ao nada de sua aposentadoria: "Pitágoras conhecia a matemática egípcia", diria, "e formulou suas leis incluído-a". Mas apesar das opiniões contrárias desse obtuso cidadão, o mistério continuaria seu curso com a informação de que as construções dos grandes povos das américas (incas, maias e astecas) obedeciam às mesmas proporções áureas gregas. Choque estético enigmático. Haveria uma noção estética universal? Para nosso nível cientifico atual esse é um inexplicável sem explicação só comparável à constatação de que a abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven, sendo, pelo próprio desejo do compositor análoga as batidas que o destino desconhecido pode produzir em uma porta, seja também idêntica ao canto de um pássaro mexicano.

Foi nesse estado de animo que me encontrei com o livro onde Carlo Ginzburg, historiador que esteve em Porto Alegre nesse ano de 2002, publica um esclarecedor ensaio comparando os métodos usados por Sherlock Holmes e Sigmund Freud para elucidar seus casos. Ginzburg preconiza que os dois tinham procedimentos idênticos e dá detalhes da origem dos desenvolvimentos freudianos. Giovanni Morelli, médico, crítico de arte e posteriormente senador italiano foi o inspirador da técnica psicanalítica. Como? Morelli em 1874 e 76 publicou suas conclusões, as que Freud teve acesso. (Interessante notar que Freud, por óbvias razões, isentas de preconceito, não lia livros de psicanálise).  Dizia que o trabalho de autenticação de obras de pintores e escultores reconhecidos era muito difícil mas possível, desde que se tivessem alguns cuidados em mente. Se algum falsificador quisesse "fabricar" uma obra de Leonardo poria especial atenção nos enigmáticos sorrisos ou na técnica do ‘esfumato’, mas jamais poderia saber tanto como para estender seu preciosismo aos pequenos detalhes como forma das orelhas, das mãos, dos pés. O diagnóstico de falsificação é, portanto, feito a partir de matérias insignificantes, do que todos dispensam como sem importância, do lixo como diria Freud. Era simplesmente uma questão de ficar despretensiosamente observando até entender. Em um caso a obra de arte; em outro o discurso do paciente. Morelli preconizava uma detetivesca captação estética. Interessante observar, a essa altura,  como a psicanálise está unida à arte desde seus primórdios.

Também, para a matéria que nos ocupa, influiu de forma decisiva no meu pensamento a classificação que o historiador da medicina psicossomática espanhol de nome Lain Entrango faz dos modelos mentais quando estuda as explicações existentes para as enfermidades físicas. Entralgo estratifica em primitiva, religiosa, cientifica e antropológica os quatro níveis essas concepções.

Todos esses ‘choques estéticos’ me encaminharam a uma localização mental que tentarei descrever. O nível mais básico de pensamento do ser humano é o politeísta, próprio das organizações sociais mais primitivas. Depois de assistir a uma produção cinematográfica esmerada de uma antropóloga argentina (de quem lamentavelmente não guardei o nome) sobre a forma vida de algumas tribos de indígenas da Patagônia, se desvaneceram minhas poucas ilusões sobre a pretensa maravilha da vida dos índios ou de suas fantásticas relações ecológicas com a natureza. Noto como difundida uma certa idealização dos povos primitivos. Pelo menos aqueles primitivos, com mais de cinqüenta deuses, eram obrigados a passar grande parte do seu tempo tentando apaziguar os maus e favorecer os bons. Vidas tão paranóicas como as dedicadas às umbandas em geral, acendendo velas pelas esquinas ou matando galinhas com deficiente comida em casa. Essa primeira fase corresponde a um politeísmo alucinado, muito difícil, com pouco tempo para criar novas circunstâncias vitais favoráveis.

A segunda fase, a moral, foi inaugurada, dentro do pensamento humano ocidental, por Moisés, ao descer do monte, como um grande progresso em relação ao primitivismo anterior. Com o aparecimento das tábuas da lei houve os primeiros ordenadores universais criados pelo homem. Claro que Akenaton, quando instalou o efêmero monoteísmo no Egito, assim como Jesus Cristo, com sua assepsia física, colaboraram com outros ângulos dessa nova orientação progressista moral para a sociedade. Embora essa fase persista com muita força através do fanatismo das atuais "novas" religiões tão alastradas, foi um salto importantíssimo para o ser humano, algo que poderia ser descrito, grosso modo, como a passagem da fase esquizoparanóide para a fase depressiva ou como a inauguração histórica da unificação trazida pela instalação do superego na cultura. Esse predomínio, com várias luzes sendo, de tempos em tempos, acendidas, vai até o fim do século IXX, como escutei de  Voltaire Schilling, há alguns dias, com a revolução do pensamento começada pelos gregos e concluída por Nietzche quando proclama a morte de deus.

Nesse ponto começa o terceiro nível de funcionamento mental, o ético. Aqui ao ser humano é permitido ser singular, ter pensamentos próprios, interagir, discutir, expor. Existe um respeito pela felicidade do outro e o reconhecimento de méritos pessoais pode ocasionar diferenciações e progressos. Torna-se possível a admiração, grande neutralizadora do poder destrutivo da inveja. Todos os grandes pensadores do século XX se ocuparam de pensá-lo.

Chegamos, por fim, com a internalização desses estágios anterior ao estético, um quarto nível de complexização. Nele se descobre que o mundo é arquitetado em conjuntos harmônicos e complementares e, com a revelação do belo, é possível desfrutá-lo. Mais adiante até defendê-lo. Uma pessoa, quando apta a admirar qualquer feito humano relevante, seja científico, artístico, esportivo, etc., se encontra nesse nível.

Surgem em mim, nesse ponto, muitas dúvidas. Como poderemos localizar, dentro do esquema proposto, interpretações psicanalíticas pertinentes que causam rechaço ou obras que, apesar de serem incontestavelmente arte, não produzem sensações esteticamente agradáveis aos nossos sentidos? Um exemplo podemos ter no que os especialistas classificam como Arte Grotesca. Estão incluídos tanto o "O Grito" de Edvard Munch, como as "Pinturas Negras" de Francisco Goya, como os quadros cubistas de Picasso e também bastante da produção contemporânea. Ou, em outro tipo de registro sensoperceptivo, a Igor Stravinsky e sua música dodecafônica, atonal e rebelde, impossível de ser apreciada para ouvidos como os meus que somente admitem como bela a música que tenha resolução de preferência idêntica a iniciada na frase melódica.

Suspeito que, para responder a questão indicada, seremos obrigados a formular um nível ainda mais alto de integração psíquica, superior ao estético. Edgar Morin pode vir em nosso auxilio. Ele chama de "humanismo universalista" a essa forma de pensamento que permite entender o mundo em toda sua complexidade. "Elogio à Razão Sensível", de Michel Maffezoli, "O Homem Pós-industrial", de Domenico de Mais, "Bubos no Paraíso – Burgueses Boêmios" de David Brooks, Michel Serres falando do "Terceiro Instruído", entre outros, são alguns autores que começam a descrever um novo tipo de homem habitando o planeta. Visão crítica ao poder do status quo científico, consciência ecológica profunda, equilíbrio entre o racional e os sentimentos (com prevalência para o último e um valor alto para a intuição), aversão não ingênua à violência, atitude contra segregações e eugenias de toda espécie, respeito pelo novo e pela criatividade, são algumas das características básicas desse novo ser. Mas confesso que, embora possa estar convencido de sua existência, consigo nada mais que entrever sua configuração. Por isso recorro ao nosso Borges que, de forma elucidativa, profere: "Hoje, nove de setembro de 1978, tive na palma da mão um pequeno disco dos 361 que se requerem para o jogo astrológico. Este outro xadrez do oriente é mais antigo que a mais antiga escritura e o tabuleiro é o mapa do universo, suas variações negras e brancas esgotaram o tempo, nele se podem perder os homens como no amor ou no dia. Hoje, nove de setembro de 1978, eu, que sou ignorante de tantas coisas, sei que ignoro mais uma e agradeço aos meus numes essa revelação de labirintos que não explorarei". A grandeza de um momento como esse, (por isso ele data) justificam uma existência inteira. À clarividente percepção da morte, sem nenhuma das ilusões religiosas tão comuns, é acrescida uma grandeza de caráter fantástica: além de não ter inveja dos que lhe sobreviverão, é capaz de indicar-lhes o caminho. Este estágio de desenvolvimento é o máximo, na minha forma de ver, que um ser humano pode alcançar.

ABRIL 2003


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